terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Dança Litúrgica



Falaremos sobre um tema interessante para o processo de inculturação da liturgia despertado pelo Episcopado Latino-Americano em Santo Domingo (SD 1, 30, 35, 43, 151, 248 e 249): a dança litúrgica. Pela encarnação de Deus em nossa história, em Jesus de Nazaré, o corpo tornou-se “sacramento de Deus” e, na liturgia, o corpo humano deve encontrar lugar para expressar essa sua sacramentalidade. A liturgia, assim, está repleta de posturas e gestos corporais, que realizados com decoro e simplicidade, expressam seus significados divinos (Sacrosanctum Concilium, nº 30; Instrução Geral sobre o Missal Romano, nº 42; CNBB, Documento 43 sobre a Animação da Vida Litúrgica no Brasil, nº 83).

A tradição judaica sempre expressou a ação de graças e o louvor a Deus através de cantos e danças (Sl 68, 4; Sl 149, 3; Sl 150, 3; Êx 15, 20; Dt 16, 13-15; 2Sm 6, 1-20; 1Cr 13, 7-8.15, 16-29). A tradição cristã encontrou, sobretudo nos primeiros séculos (época patrística), uma profunda resistência à dança dada ao paralelismo com as práticas do culto pagão do Império Romano e à influência do dualismo da filosofia platônica, que concebia o corpo como cadeia na qual a alma estava presa. Segundo o liturgista Jacques Trudel, por muitos séculos a dança foi condenada pelo cristianismo, sobretudo, “pelos excessos a que conduzia, como: sensualidade, indecências, perda de controle e, em certos casos, transe”.
O Concílio Vaticano II devolveu à própria liturgia sua compreensão como “exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo, no qual, mediante sinais sensíveis, é significada e, de modo peculiar a cada sinal, realizada a santificação do homem...” (Sacrosanctum Concilium, nº 07). Assim, o sinal sensível (o corpo que dança embalado pelo ritmo da música) deve expressar e realizar a santificação humana, pois “como celebrar nossa libertação plena em Jesus Cristo (Gl 5,1) sem liberar antes de tudo nosso corpo através da dança?” (CNBB, A Música Litúrgica no Brasil, Estudos 79 da CNBB, nº 217).
Contudo, é preciso que apresentemos aqui uma diferenciação entre dança litúrgica e dança na liturgia. São coisas distintas! Quando no ato litúrgico é introduzida uma dança que está fora do contexto celebrado, dança-se “na” liturgia, e não “a” liturgia (CNBB, A Música Litúrgica no Brasil, Estudos 79 da CNBB, nº 210). Certa vez presenciei uma bailarina, na liturgia da Palavra, entrar com a Bíblia. Depois de caminhar toda a igreja na ponta dos pés, apresentou a Bíblia e recebendo palmas, inclinou-se agradecendo os aplausos. Guardou a Bíblia na sacristia e, em seguida, o leitor fez a proclamação da leitura de um folheto, e não da Bíblia. Foi o maior exemplo de dança “na” liturgia que presenciei.
A dança litúrgica não é um elemento ornamental ou decorativo, divertimento, distração ou adendo introduzido na liturgia, mas faz parte da oração comunitária da Igreja com a função própria de ajudar a assembléia a entrar em contato com o mistério celebrado, bem como ser expressão desse mistério. Certa vez participei duma Celebração Penitencial Sacramental presidida por um bispo, no Seminário de Liturgia da CNBB sobre o Sacramento da Reconciliação. Nessa celebração, no momento ritual de “Ação de Graças pelo perdão recebido”, após a confissão dos pecados e absolvição, cantávamos e dançávamos (com incenso nas mãos) ao redor de uma grande cruz de madeira, adornada com flores e cinco velas acesas que nos lembravam as chagas gloriosas de Cristo. Bispos, presbíteros, diáconos e leigos participantes comentávamos que saímos daquela celebração exultantes de alegria e realmente convictos que fomos perdoados por Deus. Que experiência forte de Deus nós fizemos!
Para os grandes defensores da sobriedade do rito romano e para os que podem pensar que isso tudo pode parecer ser pouco “romano”, vejamos o que diz a Congregação para o Culto Divino: “em certos povos, o canto é instintivamente acompanhado do bater de mãos, de movimentos ritmados e de passos de dança dos participantes. Tais formas de expressão corporal podem ter lugar na ação litúrgica desses povos, na condição de serem sempre expressão de uma verdadeira e comum oração de adoração, de louvor, de oferta ou e súplica e não mero espetáculo” (4º Instrução da Congregação para o Culto Divino, A Liturgia Romana e a Inculturação, nº 42). Até o ritual brasileiro do Batismo de Criança, aprovado pela mesma Congregação, aconselha as danças litúrgicas: “pode-se também trazer até a fonte do batismo a água acompanhada com cantos e danças” (RBC, nº 64).
Não está excluída a possibilidade de uma ou várias pessoas exercerem o ministério da dança, atuando sozinhas ou em grupo em alguns momentos da celebração. No entanto, movimentos e passos simples podem ser realizados por toda a comunidade, evitando que a dança se torne uma exibição para uma platéia. Considerando o calendário da Igreja com suas festas e solenidades, os tempos litúrgicos e sua espiritualidade, bem como cada momento ritual, seja programado nas Celebrações Eucarísticas ou em outros momentos oportunos a “Dança Litúrgica” na procissão de abertura, hino de louvor, salmo responsorial, aclamação ao Evangelho, procissão das oferendas, Santo ou na ação de graças depois da comunhão, etc. Contudo, vale conhecer o que atesta o bispo responsável pelas celebrações pontifícias: “O Papa é favorável às adaptações litúrgicas que têm sentido... Por exemplo, quando recentemente fomos ao Brasil, percebi que os brasileiros têm em suas tradições movimentos corporais. Pedi ao bispo que preparasse alguma coisa. O bispo queria fazer a procissão com a Bíblia no começo da liturgia da Palavra. Refleti com ele que aquilo tinha sentido numa celebração da Palavra. Mas na Eucaristia, já há uma procissão que é a do Evangelho... Também estranho que certos animadores de celebrações (principalmente na América Latina) pedem ao povo que agitem bandeiras e gritem. Não se distingue bem uma celebração e um ato folclórico. Mas isso parece o estilo dessas regiões” (Monsenhor Martini, em entrevista à Revista Celébrer).
Para concluir, vale lembrar o que diz a CNBB: “não se trata, então, de dar receitas de danças litúrgicas, mas de incentivar uma busca de fidelidade e coerência que nos leve aos poucos com a sabedoria e o equilíbrio do amor e da verdade a resgatar o ‘corpo’, como mediação universal, e a ‘dança’, como instauradora de harmonia entre espírito (alma) e corpo no indivíduo; entre pessoa e comunidade; entre o mundo visível e o invisível” (CNBB, A Música Litúrgica no Brasil, Estudos 79 da CNBB, nº 216).

Padre Kleber F. Danelon é articulador da Equipe Diocesana de Assessoria Litúrgica e Pároco da Paróquia Divino Pai Eterno, em Piracicaba.

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto postado. Isso nos ajuda muito para a fundamentação do nosso ministério que, infelizmente, ainda não é tão reconhecido como um canal de evangelização.
    Paz e Bem!
    Manoela, Feira de Santana_Ba.

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